Homens
transexuais buscam visibilidade para novas gerações
Publicado
em 28/06/2018 - 07:02
Por Vinícius
Lisboa - Repórter da Agência Brasil Rio de Janeiro
Ainda pequeno, quando fazia
catequese, Patrick Lima repetia secretamente uma oração antes de dormir: pedia
para acordar no corpo de um menino. Naquela época, seus pais, professores e
toda a sociedade ainda o chamavam pelo nome feminino com que foi batizado. Com
o passar dos anos, na adolescência, ele teve acesso a ícones transexuais como
Roberta Close e Rogéria, mas todas eram mulheres. Existir como homem trans,
lembra ele, estava fora das possibilidades a que tinha acesso.
"Me descobri com 17 anos. Eu
sabia que existia a mulher trans, mas eu nunca tinha visto em lugar nenhum um
homem trans", conta ele, hoje com 27 anos. A descoberta veio com
um personagem trans no seriado norte-americano The L Word. "Quando
vi, eu pensei: 'Eu também sou'".
Com uma luta política
historicamente menos evidente que de outros grupos que celebram hoje (28)
o Dia do Orgulho LGBT, os homens transexuais vivem um "boom"
atualmente, acredita Patrick. Ele cita canais no YouTube, personagens em
novelas e o reconhecimento de figuras históricas como João Nery, transhomem considerado pioneiro no
Brasil.
Para Patrick Lima, em termos políticos, os transexuais ainda
têm um longo caminho a percorrer - Tomaz Silva/Agência Brasil
"A gente tem um movimento de
travestis e transexuais que tem 40, 50 anos. E a gente está no boom
agora", diz ele, que ainda vê pouca mobilização política para enfrentar a
invisibilidade. "Politicamente, a gente tem um caminho muito grande a
seguir."
Morador de Vista Alegre, na zona
norte do Rio de Janeiro, Patrick é operador de câmbio, mas se formou em
jornalismo. A própria escolha da graduação foi um plano B, porque seu sonho era
seguir a educação física para continuar no mundo da natação. Ele conta que
praticou o esporte dos 3 aos 18 anos, mas a consciência de sua identidade de
gênero foi tornando o maiô cada vez mais desconfortável. "Vi que não ia
aguentar."
O meio jornalístico, porém, não
facilitou em nada. Se na faculdade as chamadas e provas ainda exigiam o nome
feminino, na busca por estágios, os documentos ainda inadequados ao seu gênero
e o preconceito sabotavam suas oportunidades. "Já ouvi: 'tudo bem, você é
qualificado, mas em que banheiro a gente vai colocar você?' A gente nunca é
avaliado pelo potencial. Sempre pensam onde vão nos colocar para não ter nenhum
tipo de problema", conta ele, que viu as portas se fecharem por
não ter conseguido experiência durante a faculdade. "Meu
primeiro trabalho, com o diploma debaixo do braço, foi lavar copo."
Se para quem está iniciando a preparação para uma carreira o caminho é difícil, para quem já está estabelecido a discriminação também traz riscos. Leonardo Peçanha, de 36 anos, é ativista, especialista em gênero e professor de educação física. Ele conta que o impacto da transfobia pode fazer a pessoa trans perder não somente o emprego, mas a carreira.
Se para quem está iniciando a preparação para uma carreira o caminho é difícil, para quem já está estabelecido a discriminação também traz riscos. Leonardo Peçanha, de 36 anos, é ativista, especialista em gênero e professor de educação física. Ele conta que o impacto da transfobia pode fazer a pessoa trans perder não somente o emprego, mas a carreira.
"Quando as pessoas trans que
já tinham uma trajetória profissional perdem emprego, não é só no sentido de
mandar embora. Elas perdem toda a carreira, porque todo mundo fica sabendo.
Isso se espalha pelo meio profissional da pessoa, e ela fica desamparada."
Um exemplo disso é a história de
vida do próprio João Nery. Depois que ele se submeteu às cirurgias de
redesignação sexual, ainda na década de 1970, seu diploma de psicólogo foi
cassado, e ele perdeu sua forma de subsistência.
Para Leonardo, a família pode
fazer a diferença quando o mundo vira as costas para os homens
trans. "Quando a família acolhe, é completamente diferente a vida da
pessoa trans, porque ela não fica sozinha. As coisas se tornam menos difíceis,
porque, quando acontecer algum caso de transfobia, você vai ter quem
te acolher", diz.
Acesso à saúde
Entre os obstáculos que os homens
trans encontram em seu percurso, o acesso à saúde continua a ser um dos mais
dramáticos. A necessidade de frequentar um ginecologista, a menor qualificação
dos médicos para os procedimentos cirúrgicos e o acesso à terapia hormonal com
acompanhamento profissional podem se tornar barreiras até quando se dispõe de
um plano de saúde. Patrick lembra que a família o ajudou a pagar um plano na
época em que nenhuma empresa o contratava.
"A saúde está marcada pelas questões de gênero", diz Leonardo
Peçanha - Tomaz Silva/Agência Brasil
"A partir do plano, foi uma
saga para conseguir um médico, porque a maioria diz 'eu não entendo', 'eu não
faço', 'não concordo', 'minha religião não permite'. Ainda tem isso, você está
pagando e ainda tem que ouvir uma coisa dessa."
Leonardo concorda e conta que
muitas vezes os endocrinologistas se recusam mesmo sabendo que os hormônios são
semelhantes aos usados em tratamentos comuns de reposição hormonal. Na sala de
espera do ginecologista, os constrangimentos são muitos e as consultas, muitas
vezes, terminam em negativas de atendimento. "A saúde ainda é binária e
está marcada pelas questões de gênero."
Integrante do do Núcleo de Defesa
dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis-RJ) da Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro, a defensora pública Letícia Furtado
conta que as demandas de homens trans que chegam até o órgão estão ligadas
principalmente a serviços de saúde. As dificuldades são ainda maiores que as
encontradas pelas mulheres trans, conta a defensora, que exemplifica que a
transgenitalização (correção do órgão genital), no caso deles, ainda é
considerada um procedimento cirúrgico experimental por muitos profissionais.
Para as cirurgias complementares, como a mastectomia, os obstáculos partem de
planos de saúde ou unidades públicas que consideram o procedimento estético.
"Para um homem trans, [a
mastectomia] muitas vezes é fundamental e muitos relatam que é o que faz a
grande diferença na vida deles, que é o momento que mexe com a masculinidade
deles. Mas, como ainda consideram apenas uma cirurgia plástica, esse é um
enfrentamento que estamos fazendo."
Para o pesquisador da Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Luiz
Montenegro, a decisão recente da Organização Mundial da Saúde
(OMS) de retirar a transexualidade da lista de doenças mentais e incluí-la
como incongruência de gênero nas questões de saúde sexual pode colaborar com um
cenário de serviços mais acessíveis e profissionais mais sensíveis.
"Havia uma patologização do
que é uma condição humana, e que não tem nada a ver com doença",
argumenta. "A gente espera que os profissionais de saúde se sensibilizem.
É necessário ter mais ambulatórios para pessoas trans ou que tenhamos
profissionais de saúde engajados no cuidado das pessoas da maneira mais ampla
possível?", questiona.
Saiba mais
Edição: Juliana
Andrade
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